Há mais de uma década, a grave situação das crianças que vivem no maior arquipélago do Brasil serve também a campanhas de desinformação promovidas por grupos de interesse.
A exploração sexual infantil na Ilha do Marajó, no Pará, voltou à tona nesta semana, após a música “Evangelho de Fariseus”, da cantora gospel Aymeê, viralizar na internet ao citar diretamente o arquipélago paraense e supostas violações de direitos humanos.
O alerta, apesar de grave, trouxe que a violação de direitos na região é considerada normal — o que é repudiado por organizações que atuam no Marajó — e que haveria também tráfico de órgãos na região, o que foi desmentido pelo Ministério Público Federal.
“Marajó é uma ilha a alguns minutos de Belém, minha terra. E lá tem muito tráfico de órgãos. Lá é normal isso. Tem pedofilia em nível hard”, disse a artista, ao final da apresentação em um reality show evangélico
“Marajó é muito turístico, e as famílias lá são muito carentes. As criancinhas de 6 e 7 anos saem numa canoa e se prostituem no barco por R$ 5”, completou a artista, no vídeo com mais de 11 milhões de visualizações.
Após a repercussão, 13 promotores de Justiça do Ministério Público do Estado do Pará, responsáveis pela investigação e recebimento de denúncias, emitiram uma nota onde ressaltam que “não há qualquer notícia de crimes relacionados a tráfico de órgãos”.
Interesses oculto
Não à toa, ao misturar mentiras e verdades, a pauta foi usada novamente para disseminar desinformação
Entre elas, um discurso da ex-ministra Damares Alves (Republicanos) de 2022, sobre supostas práticas de tortura e mutilação de crianças para abuso sexual no Marajó.
Na época, ela alegou possuir evidências, mas os casos nunca foram comprovados. Tempos depois, Damares declarou ao MPF que as denúncias se baseavam apenas em relatos, não em provas.
Com isso, o MPF alegou propagação de fake news, exigindo retratação pública e uma indenização de 5 milhões de reais por danos sociais e morais à população do arquipélago.
Antes mesmo das denúncias, Damares investia no programa “Abrace o Marajó”, criado em 2019 pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, sob sua batuta, com o intuito de facilitar o acesso aos direitos humanos da população que vive no Arquipélago do Marajó.
No entanto, as entidades da região criticavam as ações do programa, alegando que se “resumia à entrega de cestas básicas” e que não contava com a participação popular, como mostrou CartaCapital.
Vale lembrar que ao criar o programa, ela chegou a simplificar o problema local ao dizer que o abuso das crianças era por “falta de calcinhas”.
Desta vez, a ex-ministra e atual senadora usou o vídeo da cantora gospel para reforçar o seu argumento. “O Marajó pede socorro e não é de hoje”, escreveu no X (antigo Twitter).
Celebridade com milhares de seguidores nas redes sociais, como Rafa Kalimann, Thaila Ayala, Gkay, Luisa Sonza, Ludmilla, Gabi Martins e MC Daniel fizeram publicações cobrando autoridades locais sobre o combate aos crimes. As postagens, contudo, não detalharam nenhum caso ou apresentaram dados oficiais.
A maioria compartilhava, na sequência, o trabalho de assistência de algumas organizações, como a do Instituto Akachi, entidade evangélica que faz “missões” no Marajó e que possui ligações com bolsonaristas evangélicos.
Os riscos do pânico indevido
Associar indevidamente o arquipélago com a exploração sexual infantil, provocando pânico e chamando a atenção de pessoas que não conhecem a realidade local, pode favorecer interesses alheios ao bem-estar da comunidade marajoara.
Este é o alerta de organizações que atuam há mais de uma década na ilha, como o Observatório do Marajó e a Cooperação da Juventude Amazônida para o Desenvolvimento Sustentável.
Em uma nota intitulada “Não acredite em tudo o que vês na internet”, o Observatório argumenta que “a propaganda que associa o Marajó à exploração e abuso sexual não é verdadeira: a população marajoara não normaliza violências contra crianças e adolescentes. Insiste nessa narrativa quem quer propagá-la e desonrar o povo marajoara”.
Enquanto ministra de Estado, Damares Alves não destinou os recursos milionários que por diversas vezes prometeu para a região, para fortalecer comunidades escolares. Ao invés disso, atentou contra a honra da população diversas vezes, espalhando mentiras, e abriu tais políticas públicas para grupos privados de São Paulo que defendem a privatização da educação pública”, relata o texto da organização.
A verdade é que a situação da Ilha, bem como do Estado, é de fato grave. O Pará registra uma média de cinco casos de abuso e exploração sexual infanto-juvenil por dia, número acima da média nacional, conforme divulgado pelo MPF.
O Arquipélago, que possui cerca de 590 mil habitantes, apresenta o menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) municipal do Brasil, de 0,418.
A falta de políticas públicas estruturadas afeta até mesmo a coleta de dados oficiais atuais sobre a exploração contra crianças e adolescentes especificamente no Marajó.
Atualmente, a região é atendida pelo Cidadania Marajó desde maio do ano passado. A iniciativa é fruto de pesquisa do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, para enfrentar os problemas enfrentados pelo arquipélago.